No meu pescoço um colar, resquício da última vez que entrei
no rio. Meu lindo amuleto, meu muiraquitã. Como uma Icamiaba é meu dever ter
esse amuleto, me diferencia de outras mulheres, de outras tribos, me diferencia
das que são fracas demais para conseguir lutar, das que dependem dos seus
maridos. Eu nem conheço o meu pai, nem sei se tenho irmãos. Não que eu
realmente sinta alguma falta disso, só sentimos falta daquilo que realmente
tivemos um dia. Eu nunca tive amor. Está próximo do novo ritual, da data em
quem eu encontrarei um homem e dele terei um filho e que os deuses me ajudem
que nasça uma mulher. Homens não são úteis para gente, só para procriar.
A noite está linda,
minhas irmãs estão na lagoa, mas estou inquieta, algum aroma estranho, algo
desconhecido, mas as vezes acho que não ando muito bem. Devo estar muito
preocupada, é a minha primeira vez. Carregar uma criança na barriga é muita
responsabilidade. Muita coisa pra quem não sabe nem o que quer fazer no próximo
dia. Só sabe o que tem que fazer.
Estou no meu ponto
preferido da floresta, é tranquilo, passa uma brisa suave, muito bom para as
noites quentes que temos por aqui. Vem aquele barulho gostoso do rio,
preenchendo o meu ser e me trazendo uma paz de espírito, essa mesma paz que
decretaria o meu fim, uma pena para eles eu ser tão bem treinada, uma pena para
eles minha mãe ter me ensinado tão bem. No meu recinto nunca sou presa e quem
tenta me caçar percebe logo como sou uma boa caçadora. Finjo permanecer
distraída, como se não tivesse notado meus agressores, é excitante saber que
eles estão aqui e ao mesmo tempo saber que eles pensam que são melhores do que
eu. Sinto vontade de rir, mas seria suspeito demais. Só uma louca para
gargalhar no meio da floresta sozinha. Pego meu arco e finjo brincar com as
flechas e espero, espero pelo fim, não o meu claro, o de quem vem até mim.
- Você não é muito
esperta, acho que nosso pai não acertou quando comentava sobre você, querida
irmã.
Eles estão em cinco,
perfeito, o número de flechas que tenho a disposição. O choque deles me
chamarem de irmã fica impresso em minha face, não sabia que minha mãe tinha
tido outras quatro crianças, todas mais velhas pelo visto. Mas como eu disse no
começo, para nós Icamiabas os homens são utilizados apenas para a procriação,
acho que minha mãe deve ter feito todas essas tentativas por nossa tribo, pela
nossa continuidade.
- Ele dizia que você
era bonita, nisso tenho que concordar. Que era boa guerreira, mas duvido que
vai ser suficientemente rápida contra todos, hoje você não sair viva daqui. Pra
aprender que vocês não são melhores que a gente, nenhuma de vocês.
Sinto vontade de
rir, ele mal termina a frase e a flecha já está no pescoço dele. Um a menos.
Agora tenho que pegar os outros quatro, não tenho mais a surpresa ao meu favor,
então eu corro e miro no outro. Mais um. Não posso errar, cinco pessoas, cinco
flechas, não vou correr para a aldeia, consigo me livrar deles sozinha. Os
outros três me dão um pouco mais de trabalho, são bem mais ágeis e perceberam
do que eu sou capaz. Mas no final das contas consigo matar todos, pego a faca
que tenho na cintura e arranco a cabeça deles, com um pouco de trabalho mas
tenho a noite inteira pra fazer isso, a noite inteira pra aproveitar os meus
mortos. Enfio as flechas no olho direito de cada um deles, mais um aviso pra
quem quiser se aproximar de nossa aldeia. Espalho as cabeças pelo caminho da
aldeia dos homens. Amanhã cedo tenho certeza que eles vão encontrar. Certeza
que vão entender que ninguém tenta matar uma Icamiaba e sai ileso.
Volto para a aldeia,
lá minha mãe está me esperando, os olhos cheios de lágrimas, vermelhos,
gritando na minha direção:
- O que você fez sua
assassina? Matou seus irmãos, seus irmãos!
Ela estava histérica,
gritava e cuspia na minha direção, como uma louca, um homem a segurava, pelas
características físicas só poderia ser o meu pai. Um homem que eu nunca vi mas
que me elogiava, que fez eu matar os meus irmãos, tudo culpa desse maldito.
Tudo culpa dele. Se eu tivesse uma flecha iria parar na cabeça dele, nem que eu
machucasse minha mãe junto, ela só pode ter enlouquecido.
- Eles queriam me
matar, eu só me defendi mãe, é tudo culpa dele.
Aponto meu dedo
tremulo na direção do ser que a segura, mas é tarde demais, ela já tinha tomado
a sua decisão, enlouquecida pela perda dos filhos, ou simplesmente por não
querer mais a responsabilidade de cuidar de mim em seus ombros.
- Ela é toda sua,
mate-a.
Com essas palavras
minha mãe me dá as costas, mas não paro para esperar qualquer outra reação, eu
corro, vou de encontro a floresta, corro para a salvação, conheço esse lugar
como a palma de minhas mãos, aqui ninguém nunca vai ser capaz de me pegar,
nesse lugar ninguém nunca vai ser capaz de me encontrar. Subo no topo da
primeira árvore e espero, vejo quando ele passa correndo por mim, mas homem
nenhum vai ser capaz de pegar uma Icamiaba, uma guerreira Amazonas, então
espero e espero. Amanhece e minha barriga grita por um pouco de alimento, como
está tudo calmo volto para o chão, tento coletar algumas frutas, ando sem rumo
durante toda a tarde, procurando um lugar mais calmo onde possa refletir. Sem
casa, sem irmãos, sem família, sem ninguém. Somos só eu e a natureza selvagem.
Maravilha! Melhor impossível.
Não sinto ele
chegando por trás, o cansaço já tomou conta de mim, a raiva interior se esvaí
em um choro curto e doloroso, a realidade recaí sobre os meus ombros, frágeis
demais.
- Iara você não
deveria ter feito isso com seus irmãos, uma morte é sempre melhor que cinco,
agora por sua culpa todos vão morrer, todos os meus seis filhos amados.
Olho para trás e
vejo meu pai, ele tem um rosto bondoso, não acreditaria em outras
circunstâncias que ele poderia fazer algum mal a mim, mas não me importo. Eu
realmente fui cruel, calor do momento quem sabe. Então não ofereço muita
resistência quando ele joga uma rede ao meu redor e me puxa, mesmo me
machucando, quanto mais rápido melhor. Penso em todas as formas de tortura que
ele pode me infringir mas nunca saberia a crueldade que aqueles olhos mansos poderiam
me causar.
A rede é aberta,
tempo suficiente para ele atar minhas mãos e meus pés, me jogar em seu ombro
como um saco de farinha e ir em direção ao rio.
- Vocês são exímias
nadadoras não é? Quero ver como você se saí com seus braços atados.
A risada que saí da
garganta dele parece o grito de uma onça, macabra demais para um pai oferecer a
uma filha, mas também não me importo com isso, antes morrer afogada no nosso
lago encantado junto com os Muiraquitãs que ficar correndo pela floresta o resto
da vida, alimento para algum animal muito maior.
Sinto quando ele me
joga nas margens do rio, terra molhada, calmaria, aquela brisa que eu tanto
gosto de sentir, vai ser um susto para a próxima Icamiaba que entrar aqui atrás
do amuleto, o máximo que vai encontrar é o meu corpo sem vida. Acho que
novamente não é uma boa ocasião para sorrir.
- Você ia ser
iniciada nesses próximos dias não é querida?
Fico quieta, não
estou com muita vontade de conversar no momento, então ele segura o meu cabelo
com força e dá um murro na minha cara, sem guardar suas forças, ele quer
realmente me machucar.
- Quando eu falar
você me responde sua maldita cria do demônio.
Apenas fico olhando
para o rosto dele, então decido que é melhor cooperar, não quero que além de
morta meu rosto fique irreconhecível.
- Sim, eu seria
iniciada nessa próxima lua cheia, junto com mais outras três meninas.
- Seria um
desperdício muito grande te matar sem que você sinta os prazeres da carne.
Aquela risada
novamente, a dor dele abrindo minhas pernas amarradas, a dor da violência
sofrida pelo meu próprio pai. Ele demora, muito mais que o necessário, só para
me causar mais dor. Preferia minha cabeça arrancada a isso, a sentir aquele
homem nojento dentro de mim. Mas é tarde demais. Ele me sujou por dentro.
Mancha que jamais alguém poderá apagar. Quando ele termina sinto apenas uma
pancada forte na minha cabeça e meu último pensamento é:
“Isso vai ter volta,
eu vou te matar”
Quando acordo, minha
cabeça dói, vejo alguns peixes a minha volta, será que morri e estou no céu dos
animais do rio? É então que eu sinto o toque da lua cheia em mim, todos os
peixes cantam, uma melodia linda, me trás lágrimas nos olhos, eles rodam a
minha volta, uma dança orquestrada por poderes que não sou boa o suficiente
para discutir. Minhas pernas começam a doer, mas não estão mais amarradas,
sinto que algo dentro de mim está mudando, também não sei avaliar o que é. Mas
meu corpo todo se une a água, sinto que faço parte disso, faço parte desse
imenso amor da mãe natureza. Horas passam, a Lua já está alta no céu quando
eles terminam a melodia. Sou deixada sozinha na água, não sei como consigo
permanecer na superfície, mas é maravilhoso. Ao olhar para minhas pernas que finalmente
pararam de doer sinto medo, não tem mais nada ali.
Vejo escamas numa
coloração esverdeada, as vezes azulada, depende muito do local que a luz da Lua
bate. Não sou mais um ser humano, sou um peixe. Metade mulher, metade peixe. O
que muitas da minha tribo chamam como Sereia. Pensei que isso não existisse mas
olha no que eu finalmente me tornei. Um pequeno peixe chega próximo de mim,
consigo sentir o seu receio, leio seus pensamentos. Eu posso me comunicar com
os peixes! Então eu digo:
- Não tenha medo,
obrigada por me salvar.
Nos dias que se
passam eles me ensinam a nadar, me ensinam os meus poderes e como eu irei
defende-los, me dizem como posso me locomover entre os rios e principalmente
que uma vez no mês, apenas uma vez, posso ir para a terra como uma bela mulher,
mas perderei todos os meus poderes, na terra não sou ninguém, como sempre foi a
minha realidade.
As palavras da minha
vingança não saem da minha cabeça, eu preciso matar o homem que me feriu. Ele
precisa saber que as ações não ficaram em pune. Então um por um eu enlaço o meu
feitiço, coisa simples, eles sempre foram fáceis demais de se enganar. Fico
parada numa rocha, metade do meu corpo para cima, outra metade emergido e
canto. Uma linda melodia, mais bonita que a dos peixes para Lua, canto até que
algum homem chegue próximo e olhe diretamente nos meus olhos, é assim que
consigo finalmente traze-los para dentro do rio. Então os devoro, mastigo cada
parte do seu corpo com um prazer diferente, mantenho eles vivos o maior tempo possível,
os gritos são encobertos com a linda melodia dos peixes, coisa que recompenso
com pedaços do corpo para o jantar. A cada nova vítima fico mais forte, a cada
nova refeição meus olhos ficam mais azuis, me dizendo que mais cedo ou mais
tarde estarei forte o suficiente para lutar.
Abaixo do lago, bem
mais fundo que os Muiraquitãs, existe uma fenda na terra, por ela posso ir para
onde desejar, para qualquer lugar que tenha um lago e uma vítima para minha
diversão. Cada vez mais parecida com um demônio, cada vez mais encantadora. Já
circulei por toda Pindorama, por cada rio que poderia me oferecer proteção, sou
a dona das águas, rainha da dor.
Meu pai não viveu
tempo suficiente para minha ira, o que é uma pena, minha mãe em sua loucura o
matou antes, mas acabei matando ela, o que de certo modo me deixou mais ou
menos satisfeita. Dizimei toda a aldeia dos homens e matei todas as Icamiabas
também. Depois de um tempo consegui perceber que meu poder exerce influência
sobre as mulheres também, as deixam loucas e sob o meu domínio. Maravilha!
No meu reino ninguém
pode me dominar, dentro das águas sou o demônio conhecido, até meus irmãos tem
medo de mim. Nada mal, quem tem medo respeita e é com esse respeito que eles
continuam vivos. Seria triste demais viver sozinha, triste demais matar sem ter
ninguém com quem dividir o jantar.
Sou Iara a rainha
das águas, se eu fosse você tomaria mais cuidado aonde toma banho ou os olhos
azuis podem te pegar.