segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A menina que sabia nadar - Releitura da Lenda da Iara



  No meu pescoço um colar, resquício da última vez que entrei no rio. Meu lindo amuleto, meu muiraquitã. Como uma Icamiaba é meu dever ter esse amuleto, me diferencia de outras mulheres, de outras tribos, me diferencia das que são fracas demais para conseguir lutar, das que dependem dos seus maridos. Eu nem conheço o meu pai, nem sei se tenho irmãos. Não que eu realmente sinta alguma falta disso, só sentimos falta daquilo que realmente tivemos um dia. Eu nunca tive amor. Está próximo do novo ritual, da data em quem eu encontrarei um homem e dele terei um filho e que os deuses me ajudem que nasça uma mulher. Homens não são úteis para gente, só para procriar.
  A noite está linda, minhas irmãs estão na lagoa, mas estou inquieta, algum aroma estranho, algo desconhecido, mas as vezes acho que não ando muito bem. Devo estar muito preocupada, é a minha primeira vez. Carregar uma criança na barriga é muita responsabilidade. Muita coisa pra quem não sabe nem o que quer fazer no próximo dia. Só sabe o que tem que fazer.
  Estou no meu ponto preferido da floresta, é tranquilo, passa uma brisa suave, muito bom para as noites quentes que temos por aqui. Vem aquele barulho gostoso do rio, preenchendo o meu ser e me trazendo uma paz de espírito, essa mesma paz que decretaria o meu fim, uma pena para eles eu ser tão bem treinada, uma pena para eles minha mãe ter me ensinado tão bem. No meu recinto nunca sou presa e quem tenta me caçar percebe logo como sou uma boa caçadora. Finjo permanecer distraída, como se não tivesse notado meus agressores, é excitante saber que eles estão aqui e ao mesmo tempo saber que eles pensam que são melhores do que eu. Sinto vontade de rir, mas seria suspeito demais. Só uma louca para gargalhar no meio da floresta sozinha. Pego meu arco e finjo brincar com as flechas e espero, espero pelo fim, não o meu claro, o de quem vem até mim.
  - Você não é muito esperta, acho que nosso pai não acertou quando comentava sobre você, querida irmã.
  Eles estão em cinco, perfeito, o número de flechas que tenho a disposição. O choque deles me chamarem de irmã fica impresso em minha face, não sabia que minha mãe tinha tido outras quatro crianças, todas mais velhas pelo visto. Mas como eu disse no começo, para nós Icamiabas os homens são utilizados apenas para a procriação, acho que minha mãe deve ter feito todas essas tentativas por nossa tribo, pela nossa continuidade.
  - Ele dizia que você era bonita, nisso tenho que concordar. Que era boa guerreira, mas duvido que vai ser suficientemente rápida contra todos, hoje você não sair viva daqui. Pra aprender que vocês não são melhores que a gente, nenhuma de vocês.
  Sinto vontade de rir, ele mal termina a frase e a flecha já está no pescoço dele. Um a menos. Agora tenho que pegar os outros quatro, não tenho mais a surpresa ao meu favor, então eu corro e miro no outro. Mais um. Não posso errar, cinco pessoas, cinco flechas, não vou correr para a aldeia, consigo me livrar deles sozinha. Os outros três me dão um pouco mais de trabalho, são bem mais ágeis e perceberam do que eu sou capaz. Mas no final das contas consigo matar todos, pego a faca que tenho na cintura e arranco a cabeça deles, com um pouco de trabalho mas tenho a noite inteira pra fazer isso, a noite inteira pra aproveitar os meus mortos. Enfio as flechas no olho direito de cada um deles, mais um aviso pra quem quiser se aproximar de nossa aldeia. Espalho as cabeças pelo caminho da aldeia dos homens. Amanhã cedo tenho certeza que eles vão encontrar. Certeza que vão entender que ninguém tenta matar uma Icamiaba e sai ileso.
  Volto para a aldeia, lá minha mãe está me esperando, os olhos cheios de lágrimas, vermelhos, gritando na minha direção:
  - O que você fez sua assassina? Matou seus irmãos, seus irmãos!
 Ela estava histérica, gritava e cuspia na minha direção, como uma louca, um homem a segurava, pelas características físicas só poderia ser o meu pai. Um homem que eu nunca vi mas que me elogiava, que fez eu matar os meus irmãos, tudo culpa desse maldito. Tudo culpa dele. Se eu tivesse uma flecha iria parar na cabeça dele, nem que eu machucasse minha mãe junto, ela só pode ter enlouquecido.
  - Eles queriam me matar, eu só me defendi mãe, é tudo culpa dele.
  Aponto meu dedo tremulo na direção do ser que a segura, mas é tarde demais, ela já tinha tomado a sua decisão, enlouquecida pela perda dos filhos, ou simplesmente por não querer mais a responsabilidade de cuidar de mim em seus ombros.
  - Ela é toda sua, mate-a.
  Com essas palavras minha mãe me dá as costas, mas não paro para esperar qualquer outra reação, eu corro, vou de encontro a floresta, corro para a salvação, conheço esse lugar como a palma de minhas mãos, aqui ninguém nunca vai ser capaz de me pegar, nesse lugar ninguém nunca vai ser capaz de me encontrar. Subo no topo da primeira árvore e espero, vejo quando ele passa correndo por mim, mas homem nenhum vai ser capaz de pegar uma Icamiaba, uma guerreira Amazonas, então espero e espero. Amanhece e minha barriga grita por um pouco de alimento, como está tudo calmo volto para o chão, tento coletar algumas frutas, ando sem rumo durante toda a tarde, procurando um lugar mais calmo onde possa refletir. Sem casa, sem irmãos, sem família, sem ninguém. Somos só eu e a natureza selvagem. Maravilha! Melhor impossível.
  Não sinto ele chegando por trás, o cansaço já tomou conta de mim, a raiva interior se esvaí em um choro curto e doloroso, a realidade recaí sobre os meus ombros, frágeis demais.
  - Iara você não deveria ter feito isso com seus irmãos, uma morte é sempre melhor que cinco, agora por sua culpa todos vão morrer, todos os meus seis filhos amados.
  Olho para trás e vejo meu pai, ele tem um rosto bondoso, não acreditaria em outras circunstâncias que ele poderia fazer algum mal a mim, mas não me importo. Eu realmente fui cruel, calor do momento quem sabe. Então não ofereço muita resistência quando ele joga uma rede ao meu redor e me puxa, mesmo me machucando, quanto mais rápido melhor. Penso em todas as formas de tortura que ele pode me infringir mas nunca saberia a crueldade que aqueles olhos mansos poderiam me causar.
  A rede é aberta, tempo suficiente para ele atar minhas mãos e meus pés, me jogar em seu ombro como um saco de farinha e ir em direção ao rio.
  - Vocês são exímias nadadoras não é? Quero ver como você se saí com seus braços atados.
  A risada que saí da garganta dele parece o grito de uma onça, macabra demais para um pai oferecer a uma filha, mas também não me importo com isso, antes morrer afogada no nosso lago encantado junto com os Muiraquitãs que ficar correndo pela floresta o resto da vida, alimento para algum animal muito maior.
  Sinto quando ele me joga nas margens do rio, terra molhada, calmaria, aquela brisa que eu tanto gosto de sentir, vai ser um susto para a próxima Icamiaba que entrar aqui atrás do amuleto, o máximo que vai encontrar é o meu corpo sem vida. Acho que novamente não é uma boa ocasião para sorrir.
  - Você ia ser iniciada nesses próximos dias não é querida?
  Fico quieta, não estou com muita vontade de conversar no momento, então ele segura o meu cabelo com força e dá um murro na minha cara, sem guardar suas forças, ele quer realmente me machucar.
  - Quando eu falar você me responde sua maldita cria do demônio.
  Apenas fico olhando para o rosto dele, então decido que é melhor cooperar, não quero que além de morta meu rosto fique irreconhecível.
  - Sim, eu seria iniciada nessa próxima lua cheia, junto com mais outras três meninas.
  - Seria um desperdício muito grande te matar sem que você sinta os prazeres da carne.
  Aquela risada novamente, a dor dele abrindo minhas pernas amarradas, a dor da violência sofrida pelo meu próprio pai. Ele demora, muito mais que o necessário, só para me causar mais dor. Preferia minha cabeça arrancada a isso, a sentir aquele homem nojento dentro de mim. Mas é tarde demais. Ele me sujou por dentro. Mancha que jamais alguém poderá apagar. Quando ele termina sinto apenas uma pancada forte na minha cabeça e meu último pensamento é:
  “Isso vai ter volta, eu vou te matar”

  Quando acordo, minha cabeça dói, vejo alguns peixes a minha volta, será que morri e estou no céu dos animais do rio? É então que eu sinto o toque da lua cheia em mim, todos os peixes cantam, uma melodia linda, me trás lágrimas nos olhos, eles rodam a minha volta, uma dança orquestrada por poderes que não sou boa o suficiente para discutir. Minhas pernas começam a doer, mas não estão mais amarradas, sinto que algo dentro de mim está mudando, também não sei avaliar o que é. Mas meu corpo todo se une a água, sinto que faço parte disso, faço parte desse imenso amor da mãe natureza. Horas passam, a Lua já está alta no céu quando eles terminam a melodia. Sou deixada sozinha na água, não sei como consigo permanecer na superfície, mas é maravilhoso. Ao olhar para minhas pernas que finalmente pararam de doer sinto medo, não tem mais nada ali.
  Vejo escamas numa coloração esverdeada, as vezes azulada, depende muito do local que a luz da Lua bate. Não sou mais um ser humano, sou um peixe. Metade mulher, metade peixe. O que muitas da minha tribo chamam como Sereia. Pensei que isso não existisse mas olha no que eu finalmente me tornei. Um pequeno peixe chega próximo de mim, consigo sentir o seu receio, leio seus pensamentos. Eu posso me comunicar com os peixes! Então eu digo:
  - Não tenha medo, obrigada por me salvar.
  Nos dias que se passam eles me ensinam a nadar, me ensinam os meus poderes e como eu irei defende-los, me dizem como posso me locomover entre os rios e principalmente que uma vez no mês, apenas uma vez, posso ir para a terra como uma bela mulher, mas perderei todos os meus poderes, na terra não sou ninguém, como sempre foi a minha realidade.
  As palavras da minha vingança não saem da minha cabeça, eu preciso matar o homem que me feriu. Ele precisa saber que as ações não ficaram em pune. Então um por um eu enlaço o meu feitiço, coisa simples, eles sempre foram fáceis demais de se enganar. Fico parada numa rocha, metade do meu corpo para cima, outra metade emergido e canto. Uma linda melodia, mais bonita que a dos peixes para Lua, canto até que algum homem chegue próximo e olhe diretamente nos meus olhos, é assim que consigo finalmente traze-los para dentro do rio. Então os devoro, mastigo cada parte do seu corpo com um prazer diferente, mantenho eles vivos o maior tempo possível, os gritos são encobertos com a linda melodia dos peixes, coisa que recompenso com pedaços do corpo para o jantar. A cada nova vítima fico mais forte, a cada nova refeição meus olhos ficam mais azuis, me dizendo que mais cedo ou mais tarde estarei forte o suficiente para lutar.
  Abaixo do lago, bem mais fundo que os Muiraquitãs, existe uma fenda na terra, por ela posso ir para onde desejar, para qualquer lugar que tenha um lago e uma vítima para minha diversão. Cada vez mais parecida com um demônio, cada vez mais encantadora. Já circulei por toda Pindorama, por cada rio que poderia me oferecer proteção, sou a dona das águas, rainha da dor.
  Meu pai não viveu tempo suficiente para minha ira, o que é uma pena, minha mãe em sua loucura o matou antes, mas acabei matando ela, o que de certo modo me deixou mais ou menos satisfeita. Dizimei toda a aldeia dos homens e matei todas as Icamiabas também. Depois de um tempo consegui perceber que meu poder exerce influência sobre as mulheres também, as deixam loucas e sob o meu domínio. Maravilha!
  No meu reino ninguém pode me dominar, dentro das águas sou o demônio conhecido, até meus irmãos tem medo de mim. Nada mal, quem tem medo respeita e é com esse respeito que eles continuam vivos. Seria triste demais viver sozinha, triste demais matar sem ter ninguém com quem dividir o jantar.
  Sou Iara a rainha das águas, se eu fosse você tomaria mais cuidado aonde toma banho ou os olhos azuis podem te pegar.

domingo, 12 de outubro de 2014

Amor Fugaz - Releitura da Lenda do Boto



  Era uma noite escura, muito mais escura do que as normais, nem a Lua dava o ar de sua graça. Observava tudo isso de cima da minha árvore favorita, com os troncos retorcidos que me ajudavam a chegar mais facilmente ao topo, me dando uma vista privilegiada do que acontecia a minha volta.
  Meus pais estavam dormindo na nossa oca, a maior que tinha na região, privilégio adquirido por nosso alto status social, família do Cacique, qual menina não gostaria de estar no meu lugar?
  Acabei de ser iniciada, aprender os segredos das mulheres e todo aquele convincente blá blá blá de ensinamentos, não que não fosse importante, eu só não estou me sentindo muito bem hoje. Noite muito quente, palavras muito fortes, novamente desobedeci meu pai, novamente fui castigada com sua irá. Não que eu tire a razão dele nisso, no final das contas eu nunca tenho razão.
  Como sempre a árvore é a minha melhor companheira, minha melhor amiga. A mãe natureza é a única que confia em mim. A única que não me diz se estou certa ou errada. Pareço uma criança choramingando, mas não tenho mais esse direito também. As pinturas feitas naquela caverna me lembram muito bem disso, me lembram muito bem do que posso ou não posso mais fazer.
  Minha vontade é sair correndo em direção ao rio, em direção a água doce e limpa, profunda, que vai sugar todas as minhas preocupações, toda minha dor e ódio. Só não sei qual o motivo, não sei como esses sentimentos ruins entraram no meu corpo, mas eles estão aqui e se fazem presentes, eles nunca mais vão sair de mim, ele me sujou, tirou a minha liberdade. Ele me encontrou na floresta, não se importou se eu queria ou não. Com aqueles olhos vermelhos, aqueles passos largos atrás de mim, aquela voz gutural. Nem sempre os antigos estão certos, nem sempre o amor e o charme que eles pensam existir é verdadeiro. Não fazemos tudo por amor e fascínio, as vezes a vida nos move pelo medo. Quase sempre pelo medo.
  Sinto uma pontada dentro de mim, como se algo estivesse me devorando por dentro, como se algo estivesse me manipulando a seguir, a ter ódio, a ter raiva de quem sempre cuidou de mim. Culpa daquele maldito ser, culpa daquele sorriso diabólico estampado no rosto tão belo, tão monstruosamente belo. Em completo contraste com aqueles braços enormes, aquelas unhas que arranharam a minha alma, tiraram toda a sanidade dentro de mim. Tento me lembrar pelas coisas mais simples.
  Meu nome é Iangá, filha do Cacique junto com Angá, minha irmã é a Suia e meu irmão, qual o nome do meu irmão? Começo a chorar, gritar, todos estão acordando, mas não consigo me controlar. Se eles descobrirem vão me mandar embora, vão me jogar para fora da aldeia, sem eira nem beira, sem nenhuma vontade de prosseguir. Eu quero contar para alguém, Acy talvez me ajudasse, finalmente consigo lembrar o nome do meu irmão. Ele sempre ajuda Suia, sempre. Preciso me controlar, parar de esfregar a mão nos ouvidos, parar de gritar, mas o mundo gira e tudo dói. Tudo nessa porcaria de mundo quer me levar para baixo, quer me enlouquecer. A culpa é desses malditos olhos vermelhos que me perseguem na floresta, nos sonhos e sempre que por algum motivo tolo eu fecho os olhos. A culpa é dele que desobedeceu as suas próprias regras por mim, por querer a mim.
  Os dias de confinamento acabaram, cerca de quatro noites atrás. Foi quando o espírito da floresta que me dominava na caverna finalmente me deixou sair, ele me aconselhou a passar a noite na caverna e sair logo cedo, ir embora quando o sol raiasse, mas para o meu azar não consegui. Para o meu azar a saudade da família e a vontade de estar nos braços de minha mãe me dominaram, me fizeram correr, fizeram com que eu pensasse como criança e não como a mulher que eu deveria ter me tornado. A mísera mulher que aquelas pinturas corporais deveriam me fazer enxergar. Pena que meus olhos só conseguem ver o que me dá na telha. O que tenho vontade.
  Saí correndo pela floresta, feliz, sorrindo, sentindo a terra nos meus pés e as folhas no rosto, não conseguia perceber como estava escuro, como estava mais escuro que o normal, nem aquela névoa me fez parar. Talvez desse tempo de voltar para a caverna se eu tivesse ao menos tido a inteligência de reparar que estava tudo quieto demais. E quando a natureza para de cantar é melhor se esconder. Melhor abrir um buraco no meio da terra e fingir que morreu ou você vai acabar morrendo de uma maneira ou outra.
  Nem a Lua estava presente, acho que esse foi o primeiro sinal que me fez sentir o medo, sentir a encrenca em que eu me enfiei. Não demorou muito pra o assovio começar, bem baixinho, até ser alto demais para eu conseguir superar. O desespero tomava conta de mim, sentei no chão e comecei a chorar. Não era nenhuma mulher, só uma criancinha que daria tudo para ter sua mãe por perto, ou melhor dizendo, a força dos braços decididos de seu pai, para a carregar e tirar de lá. Mas não foi isso que aconteceu, não, seria sorte demais para um ser tão ínfimo. O que viria seria muito pior.
  - Uma moça bonita não deveria andar pela floresta sozinha tão tarde da noite.
  Não sei quanto tempo ele estava me observando, mas quando levantei o rosto vi um homem lindo, sua pintura corporal era perfeita, seu corpo esculpido por Tupã. O sorriso era algo que nenhuma palavra poderia explicar, mas seus olhos eram traiçoeiros, muito traiçoeiros para um sorriso tão angelical. Mas o que realmente me chamou atenção foram seus cabelos molhados, ninguém em sã consciência iria no rio tão tarde da noite, ninguém que eu quisesse realmente encontrar sozinha na floresta. Então com uma leveza sobrenatural ele vem até mim e senta ao meu lado.
  - Eu poderia te levar até seus pais linda menina, poderia te dar o mundo se assim você me pedisse.
  O cheiro que vinha de sua pele era estranho, me fazia lembrar os dias que comíamos peixe dentro de casa. Podre. Podre demais para quem acabou de sair de dentro do rio. Meus músculos estavam retesados, eu deveria correr, mas algo me fazia congelar, algo não queria que eu levantasse.
  - Você não vai conversar comigo? É tão triste ser sozinho, queria tanto alguém para ficar comigo.
  Encostando sua cabeça no meu ombro sinto com mais força ainda aquele cheiro desagradável de peixe podre, o cabelo molhado escorre em mim e por mais estranho que pareça aquela água fria me queima, me trazendo de volta a realidade, trazendo à tona a minha tão sumida voz.
  - O que você quer de mim?
  - Conversar, quem sabe te convencer que deveria ficar comigo ao invés de voltar para sua família. Eles não sentiriam a sua falta afinal.
  Estou confusa, até que finalmente a ficha caí, até que finalmente eu me lembro dos meus ensinamentos, lembro daqueles dias duros dentro de uma rocha. E o sinal de alerta grita dentro de mim. Não ande sozinha na floresta a noite minha querida, não vá ao rio, ou o Boto pode te pegar. O boto pode te pegar... Com um solavanco tiro a cabeça dele de cima de mim e pronto, o feitiço está acabado, quando a Lua finalmente aparece no céu, tocando a pele daquela demônio, consigo ver sua verdadeira forma. Os olhos vermelhos, as mãos gigantes com unhas maiores ainda, os pés pequenos demais para as pernas grandes. Mas aquele sorriso angelical foi o que mais sofreu transformação, os caninos são gigantes, vão até o final do rosto dele, do cabelo encaracolado e negro sobrou apenas peixes demoníacos que saem no lugar. Todos eles querendo me devorar.
  - Menina boba, poderia ter tudo que quisesse mas preferiu a verdade. Preferiu negar um filho meu, agora vai morrer!
  Corro, grito e choro, mas corro muito mais pela floresta, ele está ao meu encalço, não faz força alguma, é um jogo divertido para o Boto demônio perseguir meninas pelo rio Amazonas, que triste fim, ao invés de ter um bebê vou ter um par de dentes cravado no meu corpo, vou virar comida de peixe no fundo do rio. Deveria ter ouvido minha mãe.
  Quando tudo fica quieto novamente sinto um alívio, como se finalmente tivesse conseguido enganar o meu perseguidor. A armadilha já tinha sido montada e como uma presa boba eu caí, ao olhar para frente, após uma pequena quantidade de árvores vejo o rio, escuto aquele assobio macabro novamente e lá está ele. Lindo como no começo, maravilhoso como um lindo índio deveria ser. Ele me estende a mão, sinal da minha última oportunidade.
  - Não tem como escapar, quando é escolhida nada nem ninguém pode te proteger, venha cá pequena Iangá, não vamos dificultar mais ainda as coisas para você.
  Vou em direção ao rio, enfeitiçada, aquelas palavras como a linda melodia dos Uruás que minha família costumava tocar. Estendo a mão e seguro firme no boto. Seguro firme no meu destino sem mais chorar. Não é pela beleza é pelo medo, pela dor. Pela vontade de fazer tudo aquilo acabar. Ele me deita nas margens do rio, quando percebo seu corpo já está sob o meu, forte e quente, o abraço da morte. A dor não demora a vir, aqueles velhos olhos vermelhos me encaram como se meu medo desse mais prazer, então desisto de tudo. Espero que tudo acabe logo. Que ele morra aonde está.
  - Boa menina, boa menina, boooa menina
  Cada vez mais embargada aquela voz me enoja, quero gritar, morder ele até que morra, mas tudo que consigo fazer é esperar, sentir o corpo dele encima de mim, sentir o vai e vem daquele demônio, daquele ser quente e forte que me dominou. Fecho os olhos, quando abro estou segurando o cabelo dele com força e ele ri, ri como um animal louco e ferido. Desprendendo-se de mim, me deixando sozinha a sangrar, mais uma vítima do Boto, mais uma vítima da fatalidade de passar próximo de um rio a meia noite e ser escolhida. Antes de sair ele me beija, algo com tanta ternura que nem consigo acreditar que veio de um monstro. Tarde demais, eu já te odeio. Quando acordo a única coisa que me espera é o calor do sol, me dizendo que acabou, que eu posso levantar e ir embora. Me lavo no rio, com medo dele me puxar para a profundidade da morte e com esperança ao mesmo tempo.
  Depois do estupro do boto tudo mudou, meu ódio e minha raiva e esse ser maldito que cresce dentro de mim, que me come por dentro. Que morra também. Morram todos. A árvore já não me deixa mais em paz, a árvore já não quer mais me ajudar e me segurar dos meus medos. A noite já está alta e eu volto pro rio, na esperança de encontrar meu agressor, na loucura de poder finalmente ficar com ele. Estou louca e esperando um ser demoníaco, mas eu quero ele de volta para mim. Quero o meu demônio particular.
  No rio está tudo silencioso, igual naquela maldita noite, é um alivio quando sinto as mãos quentes dele no meu ombro. Penso até em chorar, mas isso seria bobeira demais para um ser que não tem coração, ou que no final das contas não se importa.
  - Eu sabia que você iria voltar minha pequena menina.
  Dizendo isso ele me leva até o rio em seus braços, diz algumas palavras para a água, grita algumas coisas para a lua ao seu redor e me solta, sinto a água tomar conta de mim, sinto as mãos dele me afundando, abro os olhos e vejo ele perto de mim. Ele cumpriu a promessa, ele me levou para ser feliz, eternamente morta ao seu lado, eternamente podre dentro de mim.